A hora de correr, jogar e se exercitar está mais rica: o objetivo agora é explorar as diferentes culturas e integrar os alunos
Beatriz Santomauro
marca da disciplina, foi ampliada com aspectos
da realidade local. Foto: Robson Fernandjes/AE
Todas essas idéias estão presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) - mas mal começam a se disseminar pelo país, trazendo avanços na forma de trabalhar a disciplina e ajudando a acabar com mitos, como o de que só alguns alunos, "mais dotados do que outros", conseguem aproveitar as aulas (leia mais no quadro acima). "Essa abordagem parte do princípio de que temos conhecimentos acumulados historicamente que precisam ser transmitidos para as novas gerações por meio da escola", diz Marcos Garcia Neira, da Universidade de São Paulo (USP).
Mitos pedagógicos
Muitas práticas já tradicionais não garantem a aprendizagem. Conheça algumas delas:
- Ensinar do mais fácil para o difícil
É melhor intercalar teoria e prática, jogos e fundamentos do esporte. Só treinar arremessos em aulas de basquete não garante que a criança aprenda a jogar.
- Saber dançar ou jogar é um dom
É o mesmo que dizer que habilidades são inatas e não podem ser alteradas. Pelo contrário, dar oportunidades a todos desenvolve competências independentemente da aptidão.
- A competição é nociva
Competir pode ser positivo ou negativo. Não é porque os jogos reforçam a disputa entre as equipes que as crianças vão se tornar competitivas - ou menos cooperativas - em outras atividades. Roberto Rodrigues Paes, da Universidade Estadual de Campinas, diz que "o caráter lúdico, a inclusão, o compartir e o competir próprios do esporte são motivadores".
- A Educação Física ajuda a recrear, distrair e descontrair
As práticas esportivas e os exercícios podem ser muito prazerosos, mas o objetivo da escola não é o lazer, é ensinar. As Orientações Curriculares para o Ensino Fundamental da prefeitura de São Paulo defendem que "as práticas não podem ser confundidas com aquelas dadas nas escolinhas de futebol e academias".
Alfabetização corporal
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João Batista Freire, da Universidade Estadual de Santa Catarina, destaca que hoje é essencial trabalhar a alfabetização corporal: "Existe um vocabulário motor, uma 'fala' do corpo, e é possível fazer a turma avançar apresentando novas experiências e propostas de ação". Assim, uma ampla gama de atividades deve ser proposta para os alunos ampliarem seu repertório de vivências. Se os meninos não gostam de dançar e as meninas têm menos força física, essas características precisam ser respeitadas, mas cabe ao professor criar atividades que valorizem todas as características, já que o propósito atual do ensino de Educação Física não é mais revelar atletas, como já foi comum no passado (saiba mais sobre a evolução da disciplina no Brasil na linha do tempo na página 80).
Glauco Ramos, professor do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana da Universidade Federal de São Carlos, dá um exemplo: "O futebol precisa ser trabalhado com a adaptação de regras de acordo com o grupo. Não pode ser a reprodução do esporte profissional que acompanhamos pela televisão". Esse trabalho fica mais fácil quando o professor constrói junto com a garotada as práticas corporais a estudar, aproximando a escola daquilo que é feito na comunidade. Se o funk, o hip hop e o rap são muito presentes nela, é uma ótima pedida levá-los para as aulas. Isso faz com que todos participem com mais interesse.
Como o foco não é mais só correr e pôr a turma para jogar bola, a maneira de transmitir os conhecimentos precisa ser diversificada. Por isso, a Educação Física não tem lugar apenas na quadra, mas na sala de aula, na de vídeo, no pátio, em palestras de profissionais e visitas a academias de ginástica e escolas de esportes. O caderno passa a ser o espaço para registrar descobertas e ref lexões, criar brincadeiras e regras, pesquisar e observar experiências. "Não há 100% de garantia de que o uso de materiais variados resulte em boas aulas. Mas, se forem bem usados, eles tornarão as aulas mais ricas", diz Samuel de Souza Neto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
1882
Rui Barbosa é o primeiro a valorizar a área. Pede a inclusão da ginástica nas escolas e a equiparação de seus professores aos das outras disciplinas. Acredita que é necessário ter um corpo saudável para ativar o intelecto
1900
Os discursos pedagógicos são vinculados a questões médico-higienistas. Nas aulas de Educação Física, que não eram vistas como parte do trabalho da escola, o foco era dado a conteúdos de anatomia e fisiologia
1930
Os militares são os orientadores da Educação Física nas escolas: ensinam ginástica com a intenção de formar homens fortes, disciplinados, com boa aparência física e resistentes a doenças
1937
A Constituição Federal considera a Educação Física uma prática educativa obrigatória para o ginásio (atualmente o período entre o 6º e o 9º ano), mas não uma disciplina
1945
Atividades esportivas passam a ser mais importantes que a ginástica no currículo escolar. Performance, resistência, desempenho e velocidade são as habilidades desenvolvidas
1961
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional torna obrigatória a Educação Física no primário (atualmente o período entre o 1º e o 5º ano) e no colegial (atual Ensino Médio)
1970
O vínculo entre esporte e nacionalismo se estreita. Os políticos aproveitam a boa campanha da Seleção Brasileira de futebol na Copa do Mundo para ressaltar o civismo
1971
A nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional torna obrigatória a Educação Física para o 1º e o 2º grau (atual Fundamental e Médio)
1980
Surgem novas idéias sobre o papel da Educação Física. O esporte e a ginástica, identificados como "alienados", perdem força. O que importa, a partir desse momento, é aliar a disciplina às idéias de democracia e direitos humanos
1996
A mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional propõe que a disciplina de Educação Física faça parte da proposta político-pedagógica da escola
2008
Várias perspectivas curriculares convivem simultaneamente nas escolas: a voltada à saúde, a desenvolvimentista, a psicomotora e a cultural são as que atualmente têm maior alcance
Fonte: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS)
Valorização cultural
No jargão da disciplina, a inf luência da memória impressa no corpo e nos movimentos do aluno é a chamada cultura corporal. Algumas manifestações dessas inf luências são os conteúdos a trabalhar: jogos, lutas, esportes, ginástica, atividades rítmicas e expressivas. "São 12 anos para explorar as diferentes culturas", diz Marcos Neira, da USP, referindo-se ao tempo que a garotada fica no Ensino Fundamental e no Médio. Segundo ele, "todos temos conhecimentos que precisam ser reconhecidos e ampliados pela escola". Essa concepção é conhecida como perspectiva cultural. Além dela, outras três polarizam as discussões sobre a Educação Física hoje no Brasil (leia o quadro acima).
pesquisar, observar e registrar experiências
também está na aula. Foto: Gilvan Barreto
"Não há caminho certo ou errado nem proposta melhor que outra, mas é preciso saber que aluno a escola quer formar", diz Fábio d'Ângelo, selecionador do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10. Todas as correntes têm em comum, é claro, o objeto de estudo da disciplina: o movimento. O que varia é a maneira de desenvolver as atividades em classe e a prioridade dada a um ou outro aspecto. A perspectiva cultural é tão recente que poucos dos professores de hoje tiveram aulas assim enquanto eram estudantes. "Até a década de 1980, ninguém falava em jogos, brincadeiras, expressão corporal. Eram só técnicas esportivas e muita repetição", lembra Marcelo Barros da Silva, formador de professores e consultor de programas socioeducativos. Um bom exemplo de como levar isso para a prática é o projeto de José Carlos dos Santos, que ensinou esportes de taco e raquete para turmas de 5ª série, o que lhe rendeu o troféu de Educador Nota 10 no ano passado. "Antes de ser um professor de Educação Física, é preciso ser professor da escola. Os cursos de formação têm de incorporar um novo paradigma de informação. Não dá mais para ter uma grade que privilegia o fazer. Espera-se é um reforço na parte pedagógica e didática", afirma Osvaldo Luiz Ferraz, da USP, que ajudou a reformular o currículo da universidade, concluído em 2006. "Buscamos um equilíbrio entre os aspectos biológicos e esportivos e a abordagem sociocultural."
O curso de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul também passou por mudanças em 2005. "Precisamos mostrar aos futuros professores que a disciplina é uma área do conhecimento, não um espaço para o exercício de aptidões físicas", destaca Alex Branco Fraga, coordenador do bacharelado e da licenciatura. Para isso, o estudante de graduação precisa sistematizar uma série de conhecimentos. "Existem cerca de 300 modalidades esportivas, mas poucas são exploradas. Que tal apresentar aos alunos esportes em que uma equipe entra no campo da outra ou mostrar a riqueza da ginástica olímpica como uma cultura corporal?", exemplifica Fraga. Em Duque de Caxias, na Grande Rio, a professora Tânia Casali de Oliveira é um bom exemplo das transformações pelas quais o ensino vem passando (leia a entrevista ao lado).
Até 1980, os professores eram técnicos que exploravam a repetição dos movimentos para desenvolver a capacidade física do aluno. Depois disso, diversas correntes surgiram e convivem até hoje.
- Saúde
Desde 1990, o sedentarismo e a alimentação inadequada se tornaram comuns entre crianças e a Educação Física passou a refletir sobre a questão.
Foco Ensinar hábitos e comportamentos saudáveis e a prática autônoma de exercícios físicos.
Estratégias de ensino Atividades práticas para exercitar o corpo e aulas expositivas sobre sexualidade, alimentação e estresse.
- Psicomotricidade
As pesquisas chegaram ao Brasil por volta de 1960 e cresceram em 1980.
Foco Garantir o conhecimento corporal e suas relações com os objetos, o espaço e o outro - que contribuem para o desenvolvimento integral.
Estratégias de ensino No desenvolvimento espacial e temporal, são usados bambolês, cordas, bolas de diferentes tamanhos, tecidos e bastões.
- Cultural
Cada aluno deve ser visto dentro do contexto em que vive, com sua bagagem cultural e seus interesses próprios. O professor é o mediador dos conteúdos e a criança colabora na construção das aulas por meio de discussões.
Foco Integrar alunos com habilidades diversas (inclusive aqueles com diferentes deficiências) e variar as atividades praticadas.
Estratégias de ensino O aluno pratica movimentos variados, lê, registra e reflete sobre seus aprendizados.
- Desenvolvimentista
A intenção é entender como se dá o movimento ao longo do Desenvolvimento, analisando a construção da experiência de bebês, crianças e jovens.
Foco É a ação motora com intenção, significado e contexto. Os alunos são sujeitos do próprio desenvolvimento e devem ser considerados as relações internas ao organismo e o que acontece ao seu redor.
Estratégias de ensino As aulas devem proporcionar condições para que o comportamento motor seja desenvolvido justamente pelo aumento da diversificação e pela complexidade dos movimentos.
Outra deficiência que se quer combatida é a separação entre teoria e prática, com a ampliação da carga horária dos estágios, de 150 para 450 horas (antes eles começavam no oitavo semestre, e agora, no sexto). "O programa foi dividido em três etapas para que o aluno tenha experiência de docência na Educação Infantil, no Ensino Fundamental e no Ensino Médio." Quanto maior a pluraridade de vivências, melhor para o grupo. "Nesse contexto, o papel do professor é construir uma ponte entre essas manifestações culturais locais e os conteúdos previstos", diz Souza Neto, da Unesp. Sim, é muito importante ter clareza dos conteúdos - como em qualquer disciplina, aliás - para alcançar os objetivos (confira acima as expectativas de aprendizagem para o 5º e o 9º ano do Ensino Fundamental).
As Orientações Curriculares da prefeitura de São Paulo prevêem que os alunos de 5º ano sejam capazes de:
- Identificar, explicar e demonstrar corporalmente brincadeiras, esportes, danças, lutas e ginásticas vivenciados no contexto da comunidade.
- Buscar a participação de todos, independentemente de gênero, sexualidade, raça, etnia ou biótipo.
- Analisar e comentar em diversas situações o desempenho dos participantes, compreendendo-o como fruto das características pessoais e da diversidade da prática.
- Respeitar o direito de expressão dos colegas, aceitando diferentes graus de participação.
- Reconhecer as atividades que ocorrem em outros grupos culturais e vivenciá-las.
- Identificar as relações de poder presentes nas vivências esportivas.
- Apropriar-se da terminologia específica da modalidade.
O mesmo documento prevê que os estudantes de 9º ano saibam:
- Ser críticos perante a tentativa de imposição da indústria cultural.
- Reconhecer a intencionalidade de políticas esportivas públicas e do terceiro setor.
- Analisar os programas televisivos, as crônicas e a publicidade e seus efeitos.
- Identificar as características das brincadeiras vivenciadas (regras, estratégias, conteúdo e forma).
- Elaborar formas variadas de textos.
- Adaptar formas de participação, facilitando a atuação dos colegas.
- Conhecer e relacionar os tipos de modalidade com os espaços sociais onde ocorrem.
- Compreender a construção do mito do atleta.
- Identificar as práticas discursivas presentes nos esportes que reforçam pejorativamente a identidade de raça, gênero, sexualidade e idade.
Inclusão eficiente
com deficiência deve dar a todos
a possibilidade de jogar e colaborar.
Foto: Marcelo Min / Agradecimento Escola Projeto Vida
A Educação Física, como as demais disciplinas, deve incluir não apenas os gordinhos e baixinhos, mas também os que têm alguma deficiência (física ou mental). "É papel da escola ensinar a conviver com as diferenças e oferecer meios de ajudar a aumentar a sociabilidade", diz Marcos Neira. Os PCNs defendem que isso ajuda a desenvolver "particularmente as capacidades afetivas, de integração e inserção social". Obviamente, é preciso adaptar as atividades às deficiências dos alunos de sua turma para que eles aprendam.
Ao propor um jogo com bola para uma classe em que uma das crianças se locomova em cadeira de rodas, garanta que ela possa participar, atuando como um dos jogadores ou em outra função em que ela colabore com o grupo. O ideal é dar a ela a oportunidade de treinar e desenvolver suas habilidades ou de fazer parte das atividades que envolvam competição, e não apenas atuar como técnico ou juiz, por exemplo. Dessa forma, todos ajudam, interagem, planejam e se tornam verdadeiros campeões.
FONTE:http://revistaescola.abril.com.br/educacao-fisica/fundamentos/novo-status-expressao-corporal-423950.shtml Acessado em 18/10/2009
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